Desporto 10.08.2020 21H30
"Chegámos ao fim com o sentimento de que merecíamos ter ganho aquele título" (parte I)
A temporada 2009/2010, ao serviço do Sporting de Braga, é uma das que Eduardo recorda com mais saudade.
Aos 37 anos, após 20 épocas como sénior, Eduardo dos Reis Carvalho pendurou as luvas. Desde a estreia pelo Sporting de Braga B frente ao Leixões, já depois da viragem do milénio, até à partida diante do Desportivo das Aves, esta temporada, foram mais de 500 jogos.
Em entrevista à RUM, o guarda-redes natural de Mirandela recorda as três passagens pelo Sporting de Braga e os diferentes contextos que encontrou nos seis países onde jogou. Nesta primeira parte da conversa, que será dividida em três, Eduardo elege também os colegas que mais o marcaram e as épocas mais difíceis da carreira.
RUM: O Eduardo vai voltar a trabalhar com o Carlos Carvalhal, depois de ter sido treinado por ele no Sporting de Braga, numa primeira passagem, no Beira-Mar, no Vitória de Setúbal e até no Istanbul BB - hoje Basaksehir. Puxando a fita atrás, o que recorda desses momentos da carreira em que, quando está a dar os primeiros passos na equipa principal do Sporting de Braga, é emprestado ao Beira-Mar, em 2006/2007, e logo a seguir ao Vitória de Setúbal?
Eduardo: Essa parte é curiosa. O treinador que me lançou como jogador é o treinador com quem vou começar a carreira como treinador de guarda-redes. É uma pessoa que sempre admirei e um amigo. Acreditou em mim quando me viu no Sporting de Braga e levou-me depois com ele para alguns projectos. Estou bastante orgulhoso disso. Reconheço-lhe muitas qualidades como homem e como treinador e acho que me vai ajudar muito.
Quanto ao Beira-Mar e ao Vitória de Setúbal, as duas passagens foram fundamentais. Tinha vindo de cinco épocas na equipa B do Braga e não tinha tido oportunidade na equipa principal, já que era o terceiro guarda-redes. Quando sai do Braga e vai para o Beira-Mar, o mister Carvalhal faz-me o convite para ir para a Aveiro, em Janeiro. Aceitei porque vi uma oportunidade de jogar na primeira liga, algo que nunca tinha acontecido. Depois ele sai para o Vitória de Setúbal e volta a convidar-me. Fizemos uma época fantástica e, mais tarde, reencontrámo-nos na Turquia.
No Beira-Mar, o Eduardo começa a destacar-se na primeira liga, embora a equipa tenha sido despromovida. O facto de encontrar uma contrariedade dessa ordem numa fase inicial da carreira provoca um impacto forte?
Comecei a jogar com 25 anos na primeira liga e, quando tive essa oportunidade, encarei-a como decisiva para mim. Se as coisas não corressem bem, era óbvio que as pessoas iam olhar para mim e dizer que, se calhar, não ia dar e que ia demorar mais anos até chegar lá acima. As coisas acabaram por correr bem individualmente, apesar de não termos atingido os objectivos. A seguir, no Vitória de Setúbal, acho que foi a confirmação daquela meia época que tinha feito. Foi fruto também daquilo que a equipa produziu e do excelente trabalho desenvolvido, em que saímos todos valorizados.
Nessa época, o Vitória de Setúbal qualifica-se para a Taça UEFA - hoje Liga Europa - e vence a Taça da Liga e as exibições do Eduardo saltam a vista, dando-se o regresso ao Sporting de Braga. Depois de já ter passado pela formação e pela equipa B do clube, antes dos empréstimos, volta com outra mentalidade?
Regressa um Eduardo sobretudo com mais experiência. Tive oportunidade de jogar na primeira liga e de alcançar objectivos importantes. Transportar isso para o Sporting de Braga, com o crescimento que estava a ter, foi decisivo, até para os treinadores e os clubes acreditarem que comigo era possível atingir objectivos grandes. Felizmente isso aconteceu. Conseguimos o segundo lugar e ganhar a Taça Intertoto e isso levou-me à selecção. Foi um trabalho difícil, mas meritório.
Em 2009/2010, já com Domingos Paciência - a primeira época tinha sido com Jorge Jesus -, o Braga fica muito perto de ser campeão nacional. Com que sentimento sai dessa temporada? Fica frustrado por ter estado tão próximo de conquistar um feito inédito ou sobressai o orgulho pelo trajecto que a equipa fez?
Olhando para trás, é óbvio que sentimos orgulho daquilo que foi feito. No entanto, acho que todos nós chegámos ao fim com o sentimento de que merecíamos ter ganho aquele título. Fizemos um trabalho fabuloso. Tivemos muitos sobressaltos, mas fomos a equipa que mais tempo esteve em primeiro lugar e que melhor futebol produziu. Ainda me recordo esse ano e lembro-me do balneário que a gente tinha. A gente entrava em campo e sabia logo que ia ganhar. Há coisas que não se explicam. Nesse ano, a união e o sentimento eram muito fortes. Notávamos isso nas equipas que jogavam contra nós, já que elas receavam-nos. Éramos uma equipa fantástica em todos os sentidos. Fica um pouco de frustração por não termos sido campeões.
Acha que é aí que se dá o clique e o Sporting de Braga começa a ser visto como o quarto grande do futebol nacional ou considera que isso é resultado de um trabalho desenvolvido ao longo do tempo que permite agora ao clube ter um estatuto que não tinha, por exemplo, há duas décadas?
O Braga foi o clube que mais evoluiu em Portugal nos últimos anos, com um crescimento cimentado. Temos outros casos em que as coisas correm bem uma época e depois vão por aí abaixo. No caso do Braga tem sido em crescendo. Isso tem sido demonstrado ao longo das últimas épocas, em que se tem mantido lá em cima. Esta época ficámos em terceiro lugar e conquistámos a Taça da Liga. A afirmação dos grandes clubes é ganhar títulos e ficar nos lugares que dão acesso às competições europeias. O Braga está de parabéns, tal como o presidente, pela visão e pela ambição que demonstram. Acho que o Braga está no caminho certo para que isso um dia aconteça.
Ser campeão?
Quem sabe?! Acho que está no sonho de todos os bracarenses, mas é muito difícil de prometer. No entanto, há uma coisa que vamos fazer: como o nosso treinador tem dito, jogo-a-jogo, em todos os relvados, vamos jogar para ganhar, sem dúvida nenhuma.
As primeiras experiências no estrangeiro e o regresso amargo ao futebol português
Depois dessa passagem pelo Sporting de Braga e de assumir a titularidade da selecção portuguesa, chega à Serie A, em Itália. Como viveu a experiência ao serviço do Génova? Que realidade encontrou?
Foi a primeira vez que saí de Portugal para jogar. Encontrei um campeonato duro e extramente difícil, numa equipa que tinha objectivos de ficar a meio da tabela. Foi estranho na altura. Não é fácil sair do nosso país e ir para uma liga tão competitiva, mas não deixou de ser fantástico ver aquele futebol mais tático, mais pensado e mais calculista. Foi diferente.
Na altura é treinado por Gian Piero Gasperini, agora técnico da Atalanta, que está na ribalta.
Sim, na altura já tinha um futebol bastante ousado. Gostava das linhas subidas e de equipas abertas a procurarem sempre o resultado. Numa equipa como a nossa, que tinha objectivos mais modestos, quando jogávamos contra as equipas grandes, expúnhamo-nos muito, mas era o futebol que ele queria. É um treinador fantástico e apaixonado por futebol.
Depois dessa época, seguem-se três empréstimos, sendo que o primeiro é ao Benfica, onde foi suplente do Artur Moraes. Como é chegar a um clube dessa dimensão e que balanço faz da época?
É óbvio que foi um ano complicado devido ao facto de não ter jogado regularmente. Estava a jogar na selecção nacional e deixei de jogar. No entanto, dei o meu melhor e consegui conquistar uma Taça da Liga. O convite foi feito por uma equipa como o Benfica e foi irrecusável.
Queria regressar a Portugal ou foi mais o clube que o chamou a atenção?
Acima de tudo, o facto de ser um clube de maior dimensão, que lutava para ser campeão e que jogava na Champions. Na altura, entendi que podia ser o melhor. Infelizmente, as coisas não correram bem, mas jogar num clube como o Benfica é um orgulho para qualquer atleta.
Depois reencontra o Carlos Carvalhal no Istanbul BB. O facto de poder voltar a trabalhar com alguém que já conhecia é a principal razão que o motiva a ir para a Turquia?
Sim, foi. Na altura tinha outros convites, mas ele convidou-me para um projecto bastante bom. Além disso, era uma liga desconhecida, algo novo para mim. Na altura, a gente olhava pouco para a liga turca, mas depois passaram a ir muitos portugueses para lá. É uma liga bastante competitiva, com grandes clubes. Foi uma óptima experiência. É uma maneira de estar diferente, mesmo socialmente. Apesar de a cidade ser fantástica, a língua é complicada e fica difícil a gente integrar-se. Mas adorei a experiência.
Em 2013/2014 regressa ao Braga. Que clube encontra nessa altura, comparativamente com o que tinha ‘deixado’ para ir para Itália?
Um pouco diferente. Quando tinha deixado, havia uma equipa consistente, montada, forte e experiente, capaz de outros objectivos. Lembro-me que, quando regressei com o professor Jesualdo, havia muitos jovens e talvez não fosse uma equipa que já estivesse preparada para os objectivos que o Braga queria. Realmente não foi uma época boa. Foi bastante difícil, até a nível emocional. Foi das épocas mais difíceis que tive na minha carreira.
E é aí que se percebe que um nono lugar no campeonato é considerado horrível, tendo em conta aquilo que é o Braga actualmente?
Sim, sem dúvida. Não é fácil uma equipa como o Braga, neste momento, ficar em nono lugar. É um ano muito mau. E para nós que vivemos aquilo, em que a gente queria e as coisas não aconteciam, foi bastante difícil.
"O presidente ajoelhou-se no túnel e pediu-me para ficar"
Depois vem o Dinamo Zagreb. Nas duas épocas completas em que esteve no clube, consegue a dobradinha, vencendo o campeonato e a Taça da Croácia, e joga na fase de grupos da Liga dos Campeões. Além disso, torna-se num dos ídolos dos adeptos. Como olha para essa experiência?
Foi fabulosa. Quando saí do Braga e fui para o Dinamo Zagreb, sabia que era um grande clube, com bastante exigência, em que é fundamental estar na Liga dos Campeões. As coisas marcaram-me muito. Apesar de o clube ser campeão há muitos anos, fizemos um campeonato sem qualquer derrota e fomos duas vezes seguidas à Champions. Saí de lá com o sentimento de dever cumprido e orgulhoso pela forma como as pessoas olhavam para mim.
Uma das coisas que mais me marcou foi quando tive o convite do Chelsea, que para mim foi irrecusável. Lembro-me de ter falado com o presidente do Dinamo Zagreb e de lhe ter pedido para sair e ele tentou convencer-me a não ir, até porque não havia qualquer verba para pagar. Depois de várias conversas, ele aceitou, mas disse-me para ficar até ao fim do apuramento para a fase de grupos da Liga dos Campeões. Quando acabasse, eu saía. Antes disso, tivemos o Europeu, que a gente ganhou. Lembro-me que viajamos no domingo para Portugal e, dois dias depois, já estava junto da equipa, que ia jogar uma partida do apuramento da Champions. O presidente ficou admirado por me ver porque eu não tinha tirado férias.
Numa fase mais adiantada do apuramento, já no playoff, levei as malas para Salzburgo, já que, após o jogo frente ao Red Bull, ia directo para Londres. No final, depois de termos passado a eliminatória e alcançado o objectivo, ajoelhou-se no túnel e pediu-me para ficar, dizendo que me dava tudo o que eu quisesse. Foi uma história incrível. Admiro muito aquele clube e sei que as pessoas também olham para mim com admiração. E é um pouco isso que a gente deixa na nossa carreira. Quando olhamos e vemos que temos as portas abertas nos clubes por aquilo que fomos como homens, percebemos que isso está acima de qualquer título. É preciso deixar uma marca pessoal. Um dos meus orgulhos é olhar para trás e sentir que as pessoas recordam-me pela pessoa e não só pelo atleta.
A viagem da carreira do Eduardo pára mesmo em Londres, apesar do presidente do Dínamo Zagreb não querer. Como é que surge essa oportunidade de, aos 34 anos, chegar a um clube da dimensão do Chelsea?
Às vezes, as pessoas perguntam-me 'estavas bem no Dínamo Zagreb e jogavas na Liga dos Campeões, por que razão saíste?'. Acho que a oportunidade de representar um clube como o Chelsea não se pode negar, ainda por cima aos 34 anos.
Sentiu que era a última oportunidade de chegar a um emblema desse calibre?
Sem dúvida. O treinador de guarda-redes era o mesmo que me tinha levado para o Génova e na altura estava com o Antonio Conte. Havia a possibilidade de um dos guarda-redes sair e então, para se salvaguardem, ligou-me a perguntar se queria ir e eu fiz de tudo para que assim fosse. Infelizmente, o guarda-redes que estava para sair não foi embora e não tive a possibilidade de jogar. No entanto, tive a oportunidade de conviver com alguns dos melhores jogadores de mundo, de treinar com eles e de viver coisas que achei que não iria viver. A oportunidade de estar naquele clube e pertencer a um grupo que foi campeão acabou por ser fabuloso.
A nível de clubes, foi no Chelsea que encontrou o atleta que mais o marcou?
Tive a felicidade ao longo da minha carreira de ter partilhado o balneário com excelentes companheiros. Tive o caso do Aimar no Benfica, um atleta e um ser humano fabuloso. No Chelsea, tive a oportunidade de jogar com o Hazard e com o Fàbregas. Claro que convivi com o Ronaldo na seleção, mas naquilo que é o dia-a-dia num clube foi o Fàbregas que mais me impressionou pela simplicidade e pela qualidade que demonstrava em campo.
Antes do segundo regresso a Braga, dá-se a experiência no Vitesse, em Arnhem. Essa época enquadra-se em que momento da sua carreira?
Eu acabava contrato com o Chelsea. O clube queria que eu ficasse, mas havia um problema com os chamados homegrown players. Éramos três guarda-redes estrangeiros e tinha de se abrir vaga para outro guarda-redes [formado localmente]. Assim, o Chelsea renovou contrato comigo para me emprestar ao Vitesse, um emblema parceiro do Chelsea. Deram-me a oportunidade de ir para a liga holandesa, que é muito boa, e para um clube fantástico. No final do ano tive alguns convites de Portugal, mas depois apareceu o Sporting de Braga e, aí, não podia dizer não a retornar a casa. Queria terminar cá a carreira e o presidente abriu-me essa porta.