Regional 10.10.2022 20H52
Ecos da Guerra. As histórias de quem chegou a Braga com a Ucrânia no coração
Irina Melnichuk, Alexandra Shamray e Natalia Lysenko são três dos mais de 52 mil cidadãos ucranianos que chegaram a Portugal, desde março.
São o eco da guerra, que ainda se trava em solo ucraniano, desde a invasão russa, a 24 de fevereiro.
Com o corpo em Braga, mas o pensamento em Kiev e Mykolaiv, estas ucranianas recomeçaram as suas vidas, longe do barulho das armas. Escolheram Braga, por diferentes motivos. No caso de Irina e Natalia, a ligação à cidade dos arcebispos começou há mais de 20 anos, altura em que as irmãs de ambas chegaram a território bracarense. Alexandra chegou sem conhecer nada, nem ninguém, por intermédio de Vasyl Bundzyak, um padre ortodoxo, que vive em Braga há cerca de duas décadas.
Irina e Natalia chegaram em março, Alexandra em abril. Todas fugiram com os filhos.
Irina trouxe consigo Yaryna, de um ano e sete meses, Alexandra trouxe o filho, Alexandre, de oito anos. Natalia também fugiu com o filho, de 16 anos.
Fugiram pelo mesmo motivo e têm para contar três histórias diferentes.
Irina chegou a Braga em março, com uma filha de um ano
Irina Melnichuk não queria fugir da guerra, mas, no dia em que uma bomba entoou perto da sua residência, sentiu que não tinha escolha.
Por estes dias, vive em casa da irmã, com a filha. Na mesma casa, vivem ainda os sobrinhos e os filhos destes. Yaryna já frequenta uma creche em Braga e, por aqui, tem vivido os primeiros meses de vida com mais harmonia.
Iryna tem três cursos superiores: Finanças, Direito e Administração Pública.
Não domina o português, mas, desde que chegou, tal como Alexandra, já frequentou aulas de Português, na Universidade do Minho e junto de outras entidades que quiseram ajudar. A língua continua a ser um grande entrave para conseguir ajudar e retribuir a Portugal, com os seus conhecimentos, a ajuda que tem recebido. Durante este período, Iryna garante que encontrou “muitas entidades que a ajudaram”.
Alexandra e o filho vivem, desde abril, com uma família bracarense
Uma experiência diferente tem vivido Alexandra, que, sem familiares em Braga, foi acolhida pela família de Rita Monteiro. “Tenho muita sorte por ter sido acolhida numa família portuguesa. Estes meses têm sido como se fossemos mesmo uma família”, revelou.
Na madrugada de 24 de fevereiro, acordou com o barulho dos bombardeamentos, em Kiev. “Perguntei ao meu marido o que se passava para haver tantas explosões e ele disse que tinha começado a guerra. O meu filho ouviu isso”, disse emocionada. À semelhança do que aconteceu com Iryna, o marido de Alexandra ficou no país, a combater. Na Ucrânia estão ainda “o pai e o avô”. Todos os dias o telefone toca e, quando a chamada tarda, a ansiedade apodera-se desta ucraniana, porque o perigo espreita a cada esquina.
A casa da família Monteiro sofreu grandes mudanças desde que Alexandra e o filho chegaram. Desde logo, porque Rita cedeu o seu quarto, que tem uma casa de banho privativa, à Alexandra e ao filho, para que pudessem estar à vontade, já que estavam longe do conforto do lar.
Na Ucrânia, Alexandra estudou Jornalismo, passou pela televisão e pela rádio, mas depois do nascimento do filho dedicou-se mais ao marketing e às redes sociais. Por cá, a comunicação tem sido um entrave para esta ucraniana, para quem “as aulas mais importantes são a comunicação com a família portuguesa”.
No dia em que chegaram, uma quinta-feira à noite, Rita viu “duas pessoas que estavam numa condição frágil, mas ao mesmo tempo determinadas”. Traziam duas mochilas e um trólei. Este interesse de Rita em ajudar começa quando nos chegam as primeiras notícias daqueles que fugiram em nome da sobrevivência. Fez pesquisas para perceber que plataformas de apoio a pessoas refugiadas existiam e encontrou uma em Braga, conectada com ao padre Vasyl. O pedido de ajuda acabou por chegar. Alexandra estava a caminho e precisava de abrigo, em Braga. “Eu sou mãe de dois filhos e gostaria que, se algum dia me visse nesta infeliz situação, fizessem o mesmo por mim”, explicou Rita.
Eram 22h00, de 21 de abril, “estava frio” e eles “chegaram cansados”. Depois, Rita ajudou Alexandra em todo o processo burocrático, desde a abrir uma conta no banco, a inscrever o filho na escola. “Nenhuma instituição colocou algum entrave e a resposta foi sempre muito rápida”, revelou. Foram à Escola Básica de Lomar falar com a professora. A comunicação era uma incógnita. Embora o pequeno Alexandre fale inglês, “há aplicações que ajudam na tradução” e, por isso, “não houve problemas” na comunicação na sala de aula. “Ele adora a escola”, revela Rita. Aliás, as aplicações, a que os miúdos de hoje estão habituados, foram já a base de muitas gargalhadas na casa da família Monteiro. “Aconteceu já o meu filho mais novo estar com os tradutores a falar ucraniano com o Alexandre”, recordou.
Rita comunica com Alexandra em inglês, mas com o filho dela há já dois meses que só falam em português, e, fruto desse trabalho, Alexandre tem já um nível “bastante bom” na língua de Camões. O jovem ucraniano entrou na escola em maio e, durante as férias, Rita procurou “uma professora para lhe dar aulas de português”.
Voltaremos à história de Alexandra mais à frente.
Natalia chegou em março, já trabalha e alugou um apartamento
Conheçamos agora Natalia Lysenko. Vivia de forma “sossegada, como toda a gente vive, em casa, encontros com amigos, passeios, idas ao teatro, trabalhava, estava bem, estava em paz”. Perceberão, mais à frente, a importância do teatro, nesta história.
Quando uma bomba fez explodir o prédio ao lado do seu decidiu abandonar a Ucrânia, uma decisão difícil, que teimou em adiar. “Não queria sair, esperava que acabasse rápido, porque não acreditava no que se estava a passar. Foi de repente, trouxemos apenas os bens de primeira necessidade e os documentos”, revelou. A 15 de março embarcou num voo proveniente de Budapeste com destino a Lisboa. Para trás ficaram “a família, os amigos e os colegas de trabalho”, com quem mantém “contacto” para amenizar o sentimento de preocupação.
Em Braga, quando chegou, juntou-se à irmã. É aqui que entra em cena Grácia Sofia. Uma empresária bracarense que sonhava ser médica para poder ajudar os outros. A vida trocou-lhe as voltas e há 17 anos abriu uma pequena média empresa, que seria uma nova oportunidade para todos quantos se juntassem a si a partir daquele momento. A empresa a que dá nome começou com uma mulher ucraniana, à qual se foram juntando outros cidadãos da mesma nacionalidade. Neste momento, 95% dos funcionários desta empresa são provenientes da Ucrânia. Natalia faz agora parte das estatísticas, tal como a irmã. “Não faria sentido não me empenhar na ajuda a esta situação, quase que senti essa responsabilidade”, afirmou Grácia Sofia. Esta bracarense quer que estes refugiados de guerra se sintam “integrados e apoiados”. Talvez por isso, Natalia agradeça constantemente a ajuda que tem recebido em Braga, onde reconhece que “as pessoas são muito boas” e diz ter sido “muito bem acolhida”. O emprego que Grácia Sofia deu a Natalia foi um passaporte para a sua independência. A ucraniana alugou um apartamento, onde vive agora com o filho.
BragaHabit identificou 120 agregados familiares ucranianos que precisam de habitação
Esse é também o desejo de Alexandra, que, por agora, vai procurando ajuda junto da BragaHabit. ‘Porta de Entrada’ é um programa criado pelo Governo português, em 2018, mas que, recentemente, “foi atualizado especificamente para agregados provenientes da Ucrânia”. “Neste momento, é um programa que não faz referência a qualquer tipo de condição financeira. Permite que o Estado, através do IHRU - Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana - e da sinalização do município, atribua um subsídio não reembolsável a pessoas que tenham encontrado uma solução habitacional no concelho”, explica o administrador da BragaHabit, Carlos Videira. O subsídio pode ser atribuído por transferência direta para o beneficiário ou para o proprietário, seja de uma casa particular, empreendimento turístico ou hoteleiro.
“No concelho de Braga, conseguimos identificar 120 agregados familiares da Ucrânia que precisavam de um apoio para se manter na habitação que conseguiram encontrar”, revelou.
O subsídio em causa é atribuído durante 18 meses e, por isso, no caso bracarense, este apoio representa “um investimento de 1 milhão e 100 mil euros.
Para ajudar em todo o processo de candidatura, também aqui o padre Vasyl deu uma ajuda aos seus conterrâneos, no preenchimento de toda a documentação necessária.
Segundo o administrador da empresa municipal de Braga, “está em equação uma revisão deste programa e do decreto-lei que lhe deu origem”, havendo a possibilidade “destes 18 meses passarem para 36 e até incluir a lógica do subarrendamento, diversificando as soluções”. Em Braga, garante Carlos Videira, “haverá sempre a possibilidade dessas pessoas se candidatarem a outro instrumentos, como o RADA - Regime de Apoio Direto ao Arrendamento - ou as soluções de apoio à habitação no concelho”.
"Tenho fé que Deus nos ajude para que todos possam voltar à casa onde nasceram”, Vasyl Bundzyak
Vasyl Bundzyak acordou, a 24 de fevereiro, com a notícia de que a sua terra Natal tinha sido invadida pela Rússia e que os 'seus' corriam perigo. Na Ucrânia, tem a mãe, com 90 anos, que assiste, por estes dias, ao segundo conflito armado, na Europa. O padre confessa que, quando viu as primeiras imagens, a sua primeira reação foi chorar. Depois, quis ajudar os seus. Mobilizou todos os esforços para ajudar os ucranianos a encontrar o caminho da paz, em Braga. Viajou de autocarro, percorreu milhares de quilómetros e ajudou muita gente a chegar a um porto seguro. Por cá, organizou eventos, “com a diáspora ucraniana e portugueses", para que quem chegasse sentisse que não estava sozinho”.
“Os bracarenses tiveram sempre os braços abertos e quero agradecer-lhes pelo acolhimento caloroso a estas pessoas. Eu acho que a maioria se sente em casa, mas, durante estes meses, há muitos a voltar para a Ucrânia, sobretudo, porque tiveram dificuldades ao nível da integração, nomeadamente as pessoas mais velhas”, explicou.
Vasyl apela à comunidade internacional que ajude a Ucrânia, porque não se sabe o que pode estar por chegar. “Isto é um perigo para toda a Europa. Tenho fé que Deus nos ajude para que todos se possam abraçar e voltar à casa onde nasceram”, apelou. Este padre ortodoxo continua a ajudar os ucranianos, diariamente, reunindo, por exemplo, material informático, que será útil a quem inicia agora a escola.
Desde abril, chegaram a Braga 683 ucranianos
No total, Portugal registou 52 206 pedidos de proteção temporária de cidadãos deslocados da Ucrânia e 1752 foram acolhidos no distrito de Braga, dos quais 683 no concelho de Braga.
Os números, que foram avançados à RUM pelo ministério dos Assuntos Parlamentares, dão ainda conta de que há 282 ucranianos integrados no mercado de trabalho no distrito de Braga. Destes, 56 encontraram trabalho no concelho de Braga. “Muitas destas pessoas ainda não estão integradas no mercado de trabalho porque não sabem se vão ficar ou voltar para a Ucrânia”, acrescentou a ministra dos Assuntos Parlamentares.
Registou-se, no início do ano letivo, mais de meia centena de matrículas de crianças e jovens ucranianos, nas escolas do concelho, para o ano letivo 2022/2023. Segundo a ministra, nas escolas, o país tem “condições para garantir as compensações de quem não fala ainda o português e, mesmo em Braga, já temos um número assinalável de crianças integradas nas escolas”. Ana Catarina Mendes revelou ainda que das mais de 50 mil pessoas que chegaram, “10 mil são de 100 outras nacionalidades” que não a ucraniana.
Ana Catarina Mendes considera que, para além da língua, do trabalho e da escola, a arte assume também um papel importante na integração dos refugiados e, neste aspeto, “é notável o que se tem assistido em Braga”. “Traz enriquecimento à cultura, à solidariedade e à participação cidadã”, acrescentou a ministra.
E há vários exemplos em Braga da integração através das artes, não só de ucranianos mas também de afegãos recém-chegados à cidade. Por exemplo, a Zet Gallery acolhe a exposição “First Impressions”, que junta Hanna Kyselova, Margaryta Alfierova, Nataliia Diachenko, Oleksandra Skliarenko e Yevheniia Antonova, na arte de “mostrar como sentem a guerra” através da pintura, da escultura, da fotografia e da ilustração.
"O palco é a casa do mundo"
Voltamos a Natalia que é o exemplo vivo de que a arte, neste caso o teatro, ajuda a acalmar a alma em dias difíceis. Natalia é uma das refugiadas que se juntou a um projeto da Companhia de Teatro de Braga, ‘o palco é a casa do mundo’, que a faz sentir “sossegada”, onde “conheceu muita gente” e que funciona como “uma lufada de ar fresco” numa vida assombrada pelo calor da guerra. “Sempre gostei muito de teatro, mas na Ucrânia só assistia e aqui já estou no palco”, evidencia.
A língua continua a ser o principal entrave de Natalia, mas, no palco, não sente essa dificuldade. Desde logo, porque há outros refugiados no projeto, que conta ainda com dois diretores de teatro ucranianos.
“Não me sinto confortável por não saber falar português. É muito complicado, porque sinto-me sozinha, sem amigos, sem conversas e coisas habituais. É complicado perceber o que vai ser o amanhã”, afirmou.
Apesar de se sentir bem acolhida, Natalia espera regressar à Ucrânia. Até haver a paz necessária para o regresso, vai trabalhando na empresa de Grácia Sofia. No primeiro mês, assume, trabalhou como um robot, de forma automática. O seu trabalho é bastante elogiado pela empresária, que admite que, no lugar destas pessoas, não conseguiria “aprender tão rapidamente”. “Estas pessoas não são de pedir nada, mas foi criada uma pulseira em que o valor revertia para o fundo de apoio à Ucrânia criado pela Delegação de Braga da Cruz Vermelha Portuguesa. Depois, foram criadas mais duas pulseiras, de forma a ajudar as próprias famílias”, disse Grácia Sofia.
Natalia chegou, segundo a empresária, de “coração desfeito, sem um sorriso, completamente desgastada”. Meses depois, pelo menos, o sorriso voltou.
Com sede em Braga, a empresa mantém as portas abertas para ajudar outras pessoas, garante Grácia, que diz estar “completamente feliz com a comunidade ucraniana”. “É com eles que quero continuar a trabalhar. É incrível a força de vontade que têm em ser cada dia melhores”, finalizou.
Que futuro?
Rita, que acolheu Alexandra, está certa de que também ela conseguirá a sua independência. Quando chegou, Alexandra disse ter “dormido uma noite em silêncio”, mas continua a viver em sobressalto. Ao contrário de Natalia, imagina o seu futuro em Portugal, aguardando ansiosamente pelo dia em que o marido se possa juntar a ela.
“Não vou esquecer estes momentos de partilha. Vai ficar um vazio aqui em casa quando eles saírem. Tem sido uma experiência a todos os níveis, desde logo porque os meus filhos tiveram que forçar o inglês”, reconhece a bracarense. Rita desconhecia, mas o acolhimento de refugiados de guerra parece já ser um lema familiar, uma vez que também os seus avós, por altura da Segunda Grande Guerra, acolheram um jovem francês. Enquanto a vida não segue por outras moradas, Alexandra vai conhecendo os costumes e a gastronomia portugueses. Assim como a família de Rita já teve oportunidade de provar alguns dos pratos típicos da Ucrânia.
Irina também vai permanecendo em Portugal, mas o desejo é, tão rápido quanto possível, voltar à terra Natal e poder aplicar o seu conhecimento ao serviço do país, ajudando na reconstrução da Ucrânia. “Desejo que acabe a guerra, que nos deixam em paz e que não tenham esta ambição de imperialismo”, afirma.
Por cá, Ana Catarina Mendes deixa uma garantia: “Podemos esperar um país que é solidário e que tem um forte estado social, que saberá responder a todos os que cá chegam e aos que cá estão. Há espaço para todos”.
Sandra Fernandes, professora de Relações Internacionais na Universidade do Minho, considera que vamos assistindo "a uma viragem, que não é favorável à atual liderança do kremlin, que, apesar da demonstração de força, está a fraquejar". "Putin está a perder algo fundamental na sua liderança que é o facto de os russos até agora verem nele um líder à moda soviética, uma figura que os protegia. Enquanto conseguiam ir vivendo as suas vidas, as soadagens, embora não fossem fidedignas, mostravam que os russos tanto apoiavam que Putin continuasse a guerra como que ele entrasse em negociações de paz. Isso mudou. Putin tem agora uma população que não está disposta a morrer por uma causa que não considera que seja deles", explicou a investigadora. Para Sandra Fernandes, "Putin está, de alguma forma, a perder os apoios externos que tinha, tendo que se centrar muito na frente interna", finalizou.
Estes refugiados chegam sem saber perceber a Língua Portuguesa, mas a solidariedade fala-se em qualquer idioma e Braga, como é seu apanágio, recebeu-os de porta aberta.