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Liliana Oliveira

Regional 14.01.2021 20H44

Uma casa com vista para o céu. Como (sobre)vivem os sem-abrigo de Braga ao frio

Escrito por Liliana Oliveira
A RUM acompanhou a delegação de Braga da Cruz Vermelha no ronda noturna, para prestar apoio às pessoas em situação de sem-abrigo.
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Os ponteiros do relógio apontavam para as 21h30. O termómetro indicava dois graus na cidade de Braga. Ainda assim, durante a noite deveriam atingir-se temperaturas negativas.

No carro da delegação de Braga da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) estavam já o café com leite, bem quente, o bolo e algumas peças de roupa.


Quem andava na rua, sentia o ar gélido da noite. Iniciamos a ronda noturna junto ao centro histórico, sem sinais de sem-abrigo. Os voluntários da CVP já conhecem os cantos à casa e todas as noites levam ajuda em jeito de solidariedade.

Nuno Rodrigues é assistente social, colabora com a delegação de Braga desde 2007, e é um dos técnicos que efetua as rondas diárias, durante o ano.


A unidade de retaguarda conta, neste momento, com 13 pessosas, que foram recolhidas desde novembro, e que se encontram "sem proteção ao nível da habitação", seis estavam em situação de sem-abrigo.

Com as previsões metereológicas a indicarem que o frio permanecerá nos próximos dias, o Plano de Contingência deverá ser mantido, pelo menos, até domingo. O Plano surge ao abrigo do NPISA - Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo e pretende "reforçar o trabalho que é feito todo o ano nestas alturas de frio, que põe em causa a vida humana". Para isso, a equipa de rua distribui "cobertores, agasalhos e bebidas quentes".



"Ninguém está na rua porque quer, existem fatores para isso"



Voltamos à rua. Deixamos o coração da cidade e viajamos em direção a uma rua onde numa casa abandonada, em risco de ruir, aguardam à porta o coordenador municipal de Proteção Civil, Vítor Azevedo, e dois agentes da PSP. Dentro da moradia, um homem com cerca de 50 anos esperava por mais uma noite, abrigado do frio que se tem feito sentir. Depois de largos minutos e de um incansável trabalho, os diferentes agentes convenceram o homem a dormir no centro de alojamento de emergência. "Obrigado" e "ajudem-me" foram duas das palavras que este homem, que insistiu não querer fazer mal a ninguém, mencionou. O dinheiro que tem juntado, fruto de um trabalho, têm como destino o aluguer de um quarto. Ainda não chega. E não se sabe quando juntará o suficiente, mas foi menos uma noite ao relento.


Depois de instalar este sem-abrigo, seguimos viagem. Desta vez, num outro local da cidade, para servir uma bebida quente e entregar algumas roupas a um jovem, que dormita numa outra moradia abandonada. As paragens repetem-se uma e outra vez, sempre com a missão de ajudar. Nem todos reagem da mesma maneira, alguns recusam ajuda.


"Há muito a tentação de dizer que as pessoas estão na rua porque querem, mas ninguém está na rua porque quer, existem fatores para isso. A nível social, as respostas precisam de ser renovadas, com respostas individuais de alojamento, não de alojamento com concentração de pessoas em dormitórios", começou por explicar Nuno.

O técnico da CVP considera que "ainda não estamos preparados para esta nova geração de pessoas em situação de sem-abrigo". A este propósito, relembramos, a delegação lançou o projecto Housing First e, revelou Nuno, "correu muito bem". "Começamos a trabalhar outras questões, como apartamentos partilhados, para estas pessoas terem a sua privacidade", acrescentou. A resistência, muitas vezes, está associada a dependências e comportamentos aditivos ou até a questões de saúde mental. Por isso mesmo, a delegação presta também apoio ao nível da saúde.



"Apesar de dormirem na rua, aquela é a sua casa"



Em Braga, estima-se que o número de pessoas que dormem nas ruas ronde as duas dezenas. O número tem vindo a "diminuir" muito pela convergência de esforços, referiu Nuno Rodrigues, mas também porque "os bracarenses têm dado um apoio importante na sinalização de pessoas nesta situação".


Apesar disso, o número tem tendência a crescer na altura do verão, "talvez por causa do calor e pelo aumento de comportamentos etílicos". Uma parte destes sem-abrigo recorre a casas abandonadas, "daí que não haja visibilidade na rua".

Além da distribuição alimentar e de agasalhos, a Cruz Vermelha tem como objetivo "tirar pessoas da rua".

Na delegação, o inverno começa a ser preparado em setembro, para prevenir "o risco de hipotermia" nesta altura de frio intenso. Sozinhos, na rua, ao abrigo da sorte, estes voluntários são a família que a vida lhes deu. "Somos a pessoa que vai ao sítio onde eles dormem e apesar de dormirem na rua, aquela é a sua casa", rematou Nuno.



"Não é família de parentesco, mas é uma família que reconhece as minhas necessidades"



Voltamos à viagem e a um novo sítio da cidade. Paramos para conversar com o "João" (nome fictício). Tem na rua a sua morada. Deitado na sua cama improvisada, João diz que se vai aguentando o frio. Os voluntários, reconhece,

"se não se preocupassem não traziam o pão e o leite". "Para fazer estas rondas não têm mau coração. Não é família de parentesco, mas é uma família que reconhece as minhas necessidades", frisou. 


Mais uma paragem, a última, junto a um dos jardins da cidade. Mais reservado, e já preparado para a noite fria, este homem prefere ficar a sós com os seus cobertores estendidos na relva.

Chegamos ao fim da viagem, marcada pelo frio e pela solidariedade.


Oito voluntários da delegação fazem este percurso diariamente, todos os dias do ano. Mas as ajudas da Cruz Vermelha de Braga não se esgotam aqui.


"A CVP tem uma área de intervenção para pessoas em situação de sem-abrigo com comportamentos aditivos e de dependência, um centro de alojamento temporário que acolhe 47 pessoas em situação de sem-abrigo, uma equipa de rua vocacionada para o trabalho com a população com comportamentos aditivos e uma equipa de intervenção social direta, que faz este acompanhamento de rua e trabalha na prevenção. O nosso trabalho também passa muito por evitar que novas pessoas cheguem à rua. Temos ainda o balneário e a cantina social, onde neste momento, fruto da pandemia, estamos a funcionar em regime de take-away", revelou Nuno Rodrigues.


Até à data desta reportagem, o centro de alojamento de emergência tinha apenas duas camas livres, mas existem outras soluções e respostas disponíveis, que podem ser salvaguardadas por entidades municipais ou pela linha de emergência social, com o número 144.


O café com leite aquece o corpo e alma em dias frios. O ceu é o teto de quem vive na rua e neste lar o último a dormir apaga a lua.

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