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Liliana Oliveira

Regional 29.10.2021 19H50

A vida por um fio. AVC é a principal causa de morte em Portugal

Escrito por Liliana Oliveira
Assinala-se, esta sexta-feira, o Dia Mundial do AVC. Andreia Matos sofreu um Acidente Vascular Cerebral aos 28 anos, sem que nada o fizesse prever.
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O corpo tinha dado sinais, a mão esquerda perdeu parcialmente a força, mas Andreia Matos não os percebeu. Aos 28 anos, sem que nada fizesse prever, foi vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC).


Acordou bem na manhã do dia 3 de agosto, mas, o que esta jovem de Vila Nova de Famalicão não sabia, era que o dia terminaria no Hospital de Braga, com a sua vida nas mãos de uma equipa médica, que agora, reconhece Andreia, lhe salvou a vida.


“Começou a dar-me uma dor de cabeça muito forte e o lado esquerdo voltou a falhar”, lembra.

Na sua companhia tinha apenas o filho, Rodrigo, de um ano. A mãe do namorado, que vive bem perto de Andreia, não conseguiu identificar de imediato que em causa estava um AVC, até que se deparou com a boca torta. Pediram ajuda, sem que Andreia se tenha apercebido, em momento algum, da gravidade do seu estado.

“Eu conhecia os sintomas do AVC, mas aos 28 anos ninguém acha que está a ter um”, disse a jovem, que agora diz ter tido a ajuda de uma força divina.


Passaram aproximadamente três horas entre o momento em que Andreia se apercebe que algo não está bem com o seu corpo até entrar no Hospital de Braga, a unidade de saúde do país que mais casos suspeitos recebeu, em 2020. Foram tratados mais de 780. Este ano, até junho, 420.


A vida de Andreia foi entregue ao neurorradiologista José Manuel Amorim. “Cada minuto conta” e a Andreia, revelou o médico, já vinha com “cinco horas e meia de instalação dos défices”. “Estava fora de uma janela temporal de risco/benefício para fazer o tratamento pela veia”, mas “havia tecido salvável”.


AVC atinge cada vez pessoas mais jovens, porque têm “fatores de risco de pessoas mais velhas"


Andreia sofreu um Acidente Vascular Cerebral isquémico, o que significa que uma “artéria entope”, o mais comum dos AVC, que acontece em cerca de 80% dos casos, revela Carla Ferreira, responsável pela unidade de AVC do Hospital de Braga. A restante percentagem diz respeito ao AVC hemorrágico, que acontece quando “uma

artéria rompe e inunda uma zona do cérebro”.

Para que a equipa médica saiba distinguir os dois tipos é necessário fazer uma TAC. A hipertensão arterial, por exemplo, pode causar os dois tipos de acidente. O aumento do colesterol e o tabagismo são mais propícios a provocar o AVC isquémico, já o excesso de álcool é mais associado ao AVC hemorrágico.


Voltamos à história de Andreia. A avó sofreu um Acidente Vascular Cerebral por volta dos 60 anos, mas a jovem nunca achou que fosse possível acontecer-lhe o mesmo aos 28. Na verdade, a doença pode até vitimar pessoas mais novas. Esta doença já levou para o Hospital de Braga um idoso com 102 anos e um jovem com 18.

Segundo a organização europeia, Stroke Alliance For Europe (SAFE), este ano, 780 mil pessoas no mundo vão sofrer um AVC. O custo total dos cuidados de saúde relacionados com a doença rondava, em 2015, os 45 biliões de euros. Até 2035, haverá um aumento de 45% de morte por Acidente Vascular Cerebral e um quarto dos sobreviventes a viver com efeitos duradouros.


“Sempre aconteceu em pessoas jovens, mas talvez não fosse diagnosticado”, explicou a doutora Carla. “Não havia na altura, tantas pessoas jovens com fatores de risco de pessoas mais velhas. Hoje, há jovens com 30 ou 40 anos com colesterol alto, que consomem tabaco ou álcool”.

O caso de Andreia, dado a ainda curta linha temporal, está a ser estudado, mas poderá estar relacionado com um problema no coração. Segundo a própria, “haverá uma membrana rota que deixou passar o fluxo sanguíneo para o cérebro e o sangue começou a amontoar”, por isso toma uma medicação diária e o regresso à vida normal foi retardado.

Para evitar a ocorrência de AVC em jovens, o Laboratório de Hemodinâmica do Serviço de Cardiologia do Hospital de Braga desenvolveu um novo procedimento de encerramento do Foramen Oval Patente (FOP) - uma persistência de um orifício entre a parede que separa as aurículas do coração, com elevada prevalência na população em geral, que, em casos extremos, pode conduzir a problemas graves de saúde como o AVC.


“Cada minuto equivale a milhões de neurónios perdidos"


Voltamos à sala do hospital, no dia 3 de agosto.


José Manuel Amorim recorda o caso da jovem de Famalicão que lhe caiu na urgência. “Há prioridade máxima sobre tudo o resto que existe naquele momento. É estudado o tecido cerebral, para ver em que ponto existe um impedimento ao normal fluxo de sangue”, começou por descrever. A tendência, diz o neurorradiologista, “é existirem os 'stroke professionals', clínicos especializados em AVC”.

Nesta doença, “cada minuto equivale a milhões de neurónios perdidos, por isso, quanto mais rápida for a assistência, melhor é o prognóstico”.


O procedimento médico pode ser feito através de um fármaco, a trombólise, ou por um cateter, a trombectomia.

Andreia esperou cerca de três horas para pedir ajuda médica, mas, caso tivesse demorado mais tempo a acionar o auxílio, “iria persistir com a perda de força, a assimetria da face e perda de sensibilidade”. “Cada doente tem uma impressão digital própria e a capacidade de resistir a um período sem o aporte sanguíneo é diferente”.

A janela temporal só permitia avançar para a trombectomia. “Pica-se uma artéria na virilha e sobe-se um tubo até à carótida, no cérebro. Dentro desse tubo, seguem outros mais finos, que levamos até junto do coágulo e temos duas opções: fazemos uma aspiração ou colocamos uma espécie de saca rolhas que impregna no coágulo, deixamos ficar cinco minutos, e retiramos. Depois, o que vemos é um coágulo endurecido”, detalhou o médico.


José Manuel Amorim recorda o caso de uma jovem de 32 anos, que deu entrada no Hospital na noite de S. João, já sem discurso e sonolenta. O procedimento foi rápido, durou nove minutos. “O trombo foi sugado e ouvi ‘já estou boa’, removi a cortina e a paciente já falava”, descreveu.  “Não raras vezes, este benefício pode ser observado logo na mesa”. A trombectomia mais rápida, realizada no Hospital de Braga, durou cerca de sete minutos e foi da autoria, precisamente, de José Manuel Amorim. A de Andreia não terá demorado muito mais e, por isso, o desfecho é o melhor que se podia conhecer para esta história.


“Fiquei sem sequelas nenhumas devido à rápida intervenção da equipa médica, que me salvou a vida”


Andreia voltou muito recentemente à vida normal, nomeadamente ao local de trabalho, onde conta com a colaboração de todas as colegas. O regresso, garante, tem corrido muito bem. “Fiquei sem sequelas nenhumas devido à rápida intervenção da equipa médica, que me salvou a vida”, afirmou a jovem. Passados quase três meses, apenas restam “cansaço, algumas dores no peito e de cabeça e algumas falhas de memória”.


“Quando a médica me disse que tive um AVC a minha reação foi chorar, porque só pensava no meu filho”, recordou Andreia Matos, que, depois do “susto”, passou de “um estilo de vida stressante” a uma forma mais calma de encarar os dias. “Era uma vida corrida, não havia hipótese, fazia horas extraordinárias e tenho um filho de um ano, agora, já penso muito mais em mim e já abrandei”, admitiu.

Segundo o neurorradiologista, “60% dos doentes conta com uma taxa de independência aos três meses”.

Andreia teve a sorte do lado dela, porque as três horas de espera podiam ter sido fatais.

Segundo a coordenadora da unidade de AVC, a mortalidade na fase aguda tem vindo a diminuir, muito por causa da “disseminação de unidades de AVC e tratamentos”.


Neurorradiologista do Hospital de Braga acredita que um dia será possível “fazer remotamente uma trombectomia”


E sempre que a ciência sonha, o mundo pula e avança.

“A inteligência artificial vai ser benéfica, mas não vai substituir o papel dos clínicos”, diz José Manuel Amorim. “Há até casos de hospitais mais remotos que não têm ninguém em presença física. Já existem softwares que detetam a quantidade de tecido cerebral que está em risco e onde está a interrupção de fluxo”. A robótica é também apontada pelo médico como uma aliada de peso no tratamento de vítimas de AVC.

“Já existem um ou dois centros que começam a desenvolver este tipo de robot, que está junto à virilha e o médico não está junto ao doente, mas numa consola, com um joystick, e só comanda o robot, que mete o tubo dentro do doente”, descreveu. Ainda que “esteja tudo numa fase precoce”, o neurorradiologista pensa que um dia será possível “fazer remotamente uma trombectomia”. “Quanto mais reduzirmos o tempo entre os sintomas e o restabelecimento do fluxo sanguíneo, melhor vai ser o desfecho”, alerta.



AVC e Covid-19


Voltamos ao Hospital de Braga e à doutora Carla Ferreira. Durante a pandemia, “os doentes já chegavam muito tarde, tinham medo de vir à urgência”. No entanto, poderá também haver uma relação cliníca entre as duas doenças. Segundo a médica, “alguns estudos demonstram que o vírus é muito trombogénico, podendo ser causador de algumas alterações”. “Há casos particulares em que sabemos que o AVC provém da Covid-19, em outros casos não sabemos, mas quando vemos o histórico, há pacientes que antes de ter o AVC tiveram

Covid”, apontou. Ainda assim, a literatura e os estudos só poderão confirmar estas relações numa linha temporal ainda longínqua.


O AVC é uma bomba-relógio que pode ser prevenida e evitada se adotarmos estilos de vida saudáveis. De acordo com Carla Ferreira, “praticar exercício físico, compensar o peso e reduzir o consumo de sal, álcool e tabaco pode ajudar a prevenir a doença, bem como tratar alterações como “tensão alta, diabetes ou colesterol”. Os contracetivos orais compostos, que contêm estrogénio, podem também estar associados ao AVC. Segundo a médica, o risco duplica quando comparado com mulheres que não tomam a pílula, mas não deverá causar alarme se não se verificar a conjugação com outros fatores de risco, como o tabaco.

Andreia diz ter apanhado “um susto”, não maior do que o companheiro que viveu tudo de forma totalmente consciente. “Eu não tinha consciência que podia ficar com sequelas e que alguém tinha que tomar conta de mim para o resto de vida, por isso ele sofreu por mim e por ele”, revela.

O medo é agora um companheiro de vida. “Eu tenho medo de morrer por causa do meu filho, porque quero viver muito, mas, sim, ficou o medo e qualquer sinal estou muito mais atenta”, finaliza.


Morreram 11 mil portugueses de AVC em 2019


A história de Andreia teve um final feliz. O susto não causou sequelas e a vida continua para esta jovem de 28 anos.

A cada hora, três portugueses sofrem um AVC. Na União Europeia, deteta-se mais de um por minuto.

Em 2019, registaram-se quase 11 mil mortes por Acidente Vascular Cerebral, no país. É a doença que mais mata, representando 9,8% da mortalidade em Portugal. Ainda asssim, denota-se uma ligeira melhoria face a 2018, ano em que morreram 11 235 pessoas.

A doença atinge, sobretudo, o sexo feminino, havendo 78 óbitos de homens por cada 100 de mulheres. Em média, os homens que sofrem um AVC têm 84 anos, as mulheres 79. Em Braga, a média de idades de pessoas que dão entrada no Hospital com esta doença é de 70 anos e permanecem internados 14 dias.

Dos 20 mil sobreviventes por ano, 40% precisa de reabilitação.

Andreia Matos não entra em nenhuma destas estastíticas, mas fará parte dos casos de sucesso a quem o AVC não deixou a vida em stand by.

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