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Liliana Oliveira

Regional 25.11.2020 17H02

Antes que a morte nos separe 

Escrito por Liliana Oliveira
Uma reportagem que retrata a história verídica de Sílvia, uma mulher que sofreu de violência doméstica durante mais de 20 anos e que, há oito anos, decidiu mudar de vida. 
REPORTAGEM AUDIO 

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Esta é a história da Sílvia, da Maria, da Manuela ou da Gabriela. É também a história do José ou do Manuel. E ainda do dia-a-dia dos filhos deles. É a história de todos aqueles que ainda enfrentam situações de violência doméstica. É partilhada no Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra as Mulheres, porque são elas as maiores vítimas. Em 2019, cerca de 30 mulheres foram assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros. Contaram-se ainda sete homens e pelo menos uma criança.


Sílvia foi vítima de violência doméstica durante mais de 20 anos. Conheceu o ex-companheiro estava prestes a completar 14 anos. Um homem mais velho, com quem achou ser possível viver um conto de fadas. A ilusão terminou cerca de dois anos depois. Sílvia foi vítima de violência, física e psicológica, já no namoro. “Achava bonito, porque eram ciúmes. Não sei dizer o que se passava comigo, desculpava sempre, porque achava que ele mudava”.


Um dia antes do casamento foi agredida. “Casei a um domingo e no sábado à noite fui agredida, porque me atrasei na cabeleireira. Deu-me dois murros na cara e rebentou-me a boca”, recordou.

Ainda assim, subiu ao altar. “Lembrei-me do dinheiro que me custou juntar, a mim e aos meus pais, para o meu casamento, já estavam pagos dois autocarros com gente que vinha para a cerimónia e lembrei-me da vergonha que seria para os meus pais”, justificou Sílvia.


O pai não entrou com ela na igreja e ainda a alertou, antes da cerimónia, que ia a tempo de desistir. Sílvia não o ouviu. Hoje, arrepende-se. Seguiram-se mais de 20 anos de uma história marcada pela violência. “Começou por dizer que não precisava de trabalhar, que mudasse a minha forma de vestir, tirou-me as amizades, o trabalho e o convívio com a família. Começou-me a marcar as portas com palitos para ver se eu saía e a desligar o telefone para eu não ter contacto com o exterior”, descreveu.


Quando as marcas eram visíveis, Sílvia não saía de casa. “Morávamos numa aldeia e o padeiro e o peixeiro vinham à porta, só que a minha vizinha estranhava porque eu todos os dias vinha cá fora e nesses dias não vinha”.

Da união nasceram duas meninas, elas próprias vítimas de violência. Uma vez, lembrou, "a palma da mão ficou marcada na cara da menina”. Sílvia chegou aos 270 quilogramas, perdeu o gosto por si, pela casa, por tudo. Apenas encontrava “prazer na comida”.



"Não aceitem a primeira sapatada! É o começo, não desculpem e não julguem que ele vai mudar, porque ele não muda"



Tentei matar-me duas vezes. A minha frustração era tanta que eu cortava-me. Estou toda marcada, porque era uma maneira de extravasar. E houve uma altura em que eu ia para a cama com a ideia de que ou eu me matava ou o matava. Cheguei a meter uma faca debaixo da almofada, não para me defender dele mas para o matar. O desespero era tão grande que eu pensei que antes que acontecesse tinha mesmo que ir embora”. E foi. Juntou dinheiro, sem ele saber, e saiu de casa com as duas filhas e a roupa que tinha no corpo. Não apresentou queixa, apenas simulou, "por medo". Por isso, não aconteceu nada ao ex-companheiro. Procurou ajuda junto de uma associação e o que ouviu foi: "não podemos fazer nada enquanto ele não for apanhado em flagrante". "Quando ele me der um tiro?", questionou Sílvia.

Passaram oito anos, mas as marcas ainda persistem. As filhas, diz Sílvia, "têm problemas em se relacionar, são muito fechadas, com problemas graves, como depressões". Quanto ela deixou de confiar em homens e ainda tem medo de se relacionar.


Às Sílvias de hoje, esta Sílvia deixa um recado: "Não aceitem a primeira sapatada! É o começo, não desculpem e não julguem que ele vai mudar, porque ele não muda".

Oito anos depois de ter posto um ponto final na relação, que durou mais de 20 anos, Sílvia diz-se "uma mulher cheia de esperança, uma lutadora, cheia de força para continuar, que não desiste", nem por si, nem pelas filhas. "Eu ainda vou ser feliz", garantiu.



"Estas mulheres precisam de alguém que as receba na hora da aflição para que, depois, não desistam"



Emília Santos recebe, todos os dias, pedidos de ajuda. Ela foi uma das impulsionadoras do movimento cívico Mulheres de Braga, que surgiu no Facebook face à indignação pelo assassinato de Gabriela Monteiro na via pública, em Setembro de 2019. O movimento ganhou força e agora tem já estatuto de associação.

O primeiro entrave, denuncia Emília, é o horário de funcionamento de grande parte das entidades , já que "ao fim-de-semana e fora da hora laboral não há qualquer tipo de socorro".

"Há a polícia, mas é tudo muito frio, não há um colo e estas mulheres, acima de tudo, é disso que precisam, de alguém que as empoderem, que as receba na hora da aflição para que elas, depois, não desistam", afirma Emília.


A representante da associação alerta ainda para o facto de "uma mulher que acaba de sofrer violência doméstica não ter coragem, nem capacidade mental, para pensar em muita coisa", nomeadamente em "querer fazer logo queixa". É preciso "prepará-las psicologicamente primeiro, fazê-las perceber que têm muitos direitos e que têm que denunciar".


"É preciso informar, sensibilizar e educar as crianças e a sociedade", para que não haja o "medo de denunciar", porque "virar a cara é mais fácil". Emília Santos adianta ainda que diariamente lhe passam pelas mãos "histórias horrendas, desde crianças que sofreram de violência doméstica e abusos sexuais e, hoje em dia, continuam a ser vítimas de violência". "É muito triste saber que isto existe aqui ao lado e a gente não dá conta", disse ainda Emília.

As Mulheres de Braga propõe a formação de juízes e o tratamento psicológico do agressor. Emília Santos lamenta ainda que as vítimas tenham que sofrer das duas maneiras: "dentro de casa e, depois, ter que se deslocar para muito longe e começar do zero".


Duas mulheres foram assassinadas em Braga entre Janeiro e Novembro


Ficam as marcas no corpo e na alma de alguém que não desistiu à primeira agressão. Mas ainda foi a tempo de recomeçar num lugar diferente e com paz. Quebram-se as juras de amor eterno feitas num casamento falhado, porque há actos que vão para lá do amor.

Em 2019, cerca de 30 mulheres foram assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros. Morreram ainda, vítimas de violência, pelo menos sete homens e uma criança. O ano de 2020 ainda não terminou, mas já morreram outras 30 mulheres às mãos dos companheiros.


Assinala-se, esta quarta-feira, o Dia Mundial Para a Eliminação da Violência Contra Mulheres. Em Braga, segundo o Observatório das Mulheres Assassinadas, registaram-se "dois femicídios, quatro tentativas de femicídio e uma tentativa de assassinato".

No país, "há registo de 16 femicídios e 43 tentativas em relações de intimidade, 12 assassinatos em contexto de relações familiares e dois assassinatos noutros contextos". Na sequência destes crimes, "21 filhos que ficaram órfãos".

Só no último ano, foram realizadas cerca de 840 detenções pela PSP e GNR e a Linha Nacional de Apoio à Vítima recebeu mais de 84 mil pedidos de ajuda, 79% envolveram violência doméstica.


Desde 2004 até novembro de 2020, podemos contabilizar 564 mulheres assassinadas.

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