Regional 21.09.2024 11H18
'Recordar é viver'
Assinala-se, este sábado, o Dia Mundial da Doença de Alzheimer. Em Portugal, há cerca de 200 mil pessoas com demência, a maior parte já diagnosticada com Alzheimer. Susana, 'Manuel' e Rosa entram na estatística e esta reportagem conta a sua história e a dos seus cuidadores.
“O meu problema é esquecer as coisas”. A frase pode ser repetida vezes sem conta. Nunca ninguém acha que, no cerne da questão, esteja a doença de Alzheimer. Mas esta é uma doença cada vez mais comum, que afeta mais pessoas e mais jovens.
No dia a dia atarefado, não paramos para refletir sobre a forma automática como fazemos as refeições, mas há quem já não saiba como cortar uma pizza. É o caso de Susana Malaínho, uma mulher de 60 anos, a quem foi diagnosticada a doença de Alzheimer há quatro anos.
Na altura, com 56 anos, Susana era professora do ensino especial. Os primeiros sintomas bateram à porta desde logo na preparação das aulas, que passou a demorar mais, os erros ortográficos também indiciavam que algo não estava bem. Na condução, Susana usava, por vezes, a faixa da esquerda para circular. Procurou um psiquiatra, mas, passados dois anos e com a sintomatologia a agravar-se passou para a neurologia. A idade não pôs de imediato em cima da mesa a possibilidade de Susana sofrer de Alzheimer, mas o diagnóstico acabou por se confirmar. A vida mudaria naquele momento. O marido, Rodrigo Barreto, acabaria por deixar Susana, duas vezes por semana, o Centro de Estimulação Cognitiva, na Casa da Alegria, um equipamento do Centro Social Vale do Homem (CSVH), em Vila Verde, com respostas especializadas para pessoas com Alzheimer ou outras demências. Depois, a professora passaria a frequentar o centro de dia, onde há musicoterapia, um jardim terapêutico, uma sala sensorial e, em breve, haverá também a sala da avó.
“A Susana não cozinha, não faz a cama, já não escreve e quando é para assinar alguma coisa chora”, revela o marido.
Na Casa da Alegria, entre a estrutura residencial e o centro de dia, estão 50 utentes. Andreia Costa é a diretora do espaço onde se recorre muito à terapia da reminiscência, que “é das terapias que têm mais evidências positivas nos idosos portugueses”. A Sala da Avó terá “objetos do passado”, porque ali trabalham-se “as memórias positivas”.
O Centro Social Vale do Homem tem também uma equipa preparada para o apoio ao domicílio e um espaço dedicado ao cuidador. “Pomos muitas sinaléticas na casa do doente, para que saibam, por exemplo, quais são os passos para a lavagem dos dentes, onde colocar a escova”, explicou Andreia Costa. As equipas também estão atentas a outros pormenores porque, “às vezes, as pessoas estão todo dia em jejum, porque se esqueceram de comer”.
“É importante não se sobrepor ao doente, dar orientações, mas não sobrepor. Se a pessoa ainda tiver capacidade de comer sozinha, pode-se sujar completamente, mas deve deixar-se comer sozinha”, disse ainda a diretora do equipamento.
Além disso, Andreia Costa reconhece que “deixar alguém que amamos ao cuidado do outro é um momento de coragem”. Por isso mesmo, o Centro tem também um gabinete de apoio ao cuidador, prepará-lo para o futuro e para lidar com a doença. “Os cuidadores chegam-nos cá muito cansados e desgastados e o sofrimento deles realmente impacta. Há o estatuto de cuidador informal, mas na prática não trouxe ainda grandes valias a estas pessoas”, reconhece a responsável.
Casa da Alegria, Vila Verde
No serviço de neurologia do Hospital de Braga são seguidos 14.211 doentes, dos quais cerca de 3200 foram diagnosticados com Alzheimer.
Sofia Rocha, médica neurologista nesta unidade hospitalar, revela que a doença “em idade jovem tem uma evolução que é muito mais rápida”. “A perda de capacidades atinge muito mais vezes a linguagem, muito mais vezes a capacidade de executar movimentos. Num doente que muitas vezes ainda tem atividade profissional, é muito marcante na perda e na disrupção familiar”, acrescentou.
“A Susana é minha sombra, praticamente, a casa dela conhece bem ainda, mas já não conhece toda a gente”, admite Rodrigo Barreto.
Apesar dos seus 60 anos, Susana Malainho também já não consegue executar a maior parte das tarefas domésticas, embora ainda tente e queira ajudar. “Só o simples facto de pôr a roupa a secar, por exemplo. Ela estende uma peça e depois coloca outra em cima”, exemplifica o marido. Se almoçarmos fora de casa e for, por exemplo pizza, ela já não sabe como cortar”, acrescenta Rodrigo.
‘Manuel’, assim lhe chamaremos, tem 68 anos. Foi diagnosticado com Alzheimer aos 65 anos. Era Engenheiro Mecânico e a desorientação começou a alertar a esposa, ‘Maria’. “A coisa que eu notei mais foi alguma desorientação. Por exemplo, uma coisa que me marcou muito foi a rua onde ele viveu 24 anos. Um dia passámos lá e ele não reconhecia o local onde estava”, contou. Maria era médica estomatologista e também ela foi diagnosticada com um défice cognitivo. “Consegui convencê-lo a ir a uma consulta de especialidade, arrastando-o atrás de mim porque ele não queria ir”, afirmou.
Ao contrário de Susana, ‘Manuel’ ainda consegue ter uma vida normal, executando tarefas diárias sem problema. Assume que, mal foi diagnosticado, começou a exercitar a mente e o corpo, algo que durante a sua atarefada vida profissional não fazia. “Noto que há uma degradação da memória, mas faço exercícios cognitivos que têm ajudado bastante. Eu não quero melhorar, quero apenas manter-me assim”, desabafa.
No caso de ‘Manuel’, a doença é hereditária, até porque a irmã mais velha encontra-se já num estadio avançado. Estes casos de transmissão de pais para filhos, explica Susana Rocha, são raros, representando apenas “1% de todas as demências de Alzheimer”. “Há três genes descritos e, quando estão presentes, dão sempre a doença. Se o doente com Alzheimer tem essa mutação genética, tem 50% de probabilidade de a passar aos filhos. Se o filho tiver essa mutação genética, se for portador, vai ser doente seguramente, porque tem uma penetrância de 100%, o que significa que a doença se manifesta sempre”, explicou a neurologista.
Voltamos à Casa da Alegria, desta vez para falarmos com Rosa Marques. Tem 79 anos, foi professora do ensino básico e integrou o CSVH há menos de um ano. Apesar de sofrer de Alzheimer, está ainda consciente. “Estava ali numa salinha, tem os fios elétricos com as luzinhas que apagam e acendem. É uma coisa que acalma. Fazemos muitas coisas para estimular o cérebro”, conta. Rosa diz que só se aborrece quando não tem nada para fazer, algo que não acontece na Casa da Alegria, onde “o tempo até passa rápido demais”.
A memória já a vai atraiçoando e, mesmo à entrada da instituição, não reconhecia a sua própria fotografia.
Rosa Marques
Atualmente, segundo a Organização Mundial de Saúde, 47 milhões de pessoas no mundo sofrem de demência.
Em 2030, estima-se que o número atinja os 75 milhões e que ultrapassa os 135 milhões de pessoas em 2050. Em Portugal, há cerca de 200 mil pessoas com demência. Destas, cerca de 75% estão diagnosticadas com Alzheimer. O número será superior a 320 mil, em 2037.
Segundo a neurologista Susana Rocha, a maior incidência da doença está relacionada, desde logo, com “o aumento da esperança média de vida”. “Nós vivemos mais, vamos estar mais sujeitos a doenças degenerativas”. “Os números serão assustadores. Eu acho que as nossas autoridades públicas e as que se dedicam a este setor da saúde podem não ter ainda a verdadeira noção do problema, porque isto vai ser também um problema económico. Estes doentes ficam, na maior parte das vezes, muito dependentes e já não temos e não vamos ter infraestruturas para poder suportar os cuidados destes doentes”, afirma.
A doença de Alzheimer não tem cura, mas há estratégias para retardar os efeitos. “Dividimos os fatores de risco para a doença de Alzheimer em duas partes: modificáveis e não modificáveis. Temos a idade e a história familiar e, depois, dentro dos modificáveis, que é aquilo que nós podemos trabalhar”. “Dá-se cada vez mais valor aos fatores de risco vascular, por exemplo, enfarte agudo de miocárdio ou AVC também parece ser importante para a doença de Alzheimer. Dentro disto é o controlo de tensões, diabetes, colesterol, não fumar e reduzir a quantidade de álcool”, aconselha.
Além disso, há dois fatores que parecem ser muito importantes: a atividade física e a atividade cognitiva. “O que está assim recomendado é a atividade física aeróbica, duas a três vezes por semana, uns 20 a 30 minutos, e a estimulação cognitiva e social, que é manter-se ativo mentalmente, isto é participar em coisas, fazer atividades, ter grupos. Aquela ideia de estar reformada e ficar em casa parece um fator de risco muito, muito importante para alcançar o Alzheimer”, aponta a neurologista.
Lecanemab é um medicamento aprovado nos Estados Unidos e no Reino Unido, mas não em Portugal e na maior parte dos países europeus, por ainda não ser considerado um tratamento seguro.
Ainda assim, fármacos como o Donepezilo, Galantamina ou Memantina atuam na perda de faculdades cognitivas. A ciência continua à procura de respostas. A equipa liderada por Tiago Gil Oliveira, investigador da Escola de Medicina da Universidade do Minho, neurologista no Hospital de Braga e presidente da Sociedade Portuguesa de Neurociências, tem procurado formas de identificar a doença antes dos primeiros sintomas aparecerem.
“Com a compreensão da patofisiologia da doença de Alzheimer, agora também conseguimos perceber quais é que são as alterações a nível molecular que conseguimos identificar com o que nós chamamos de biomarcadores. Assim, conseguimos identificar alguns dos aspetos que ficam alterados, relacionados com a doença de Alzheimer, ainda antes dos sintomas aparecerem”, explica o cientista. A equipa que lidera pretende “identificar a doença numa fase precoce, antes de as regiões do cérebro ficarem degeneradas, para instituir as terapias, para melhorar ou prevenir estas alterações nestes doentes”.
O investigador, acompanhado por uma equipa multidisciplinar, tenta agora abrir novos caminhos para perceber cada vez melhor a doença.
“Para além destas variantes genéticas que também aumentam a probabilidade de apresentar sintomatologia e dentro destes outros fatores, para além dos genéticos, também são aquilo que nós chamamos das copatologias, outras alterações que também podem contribuir para os sintomas aparecerem não só numa fase mais precoce, mas também com maior intensidade e com outra gama de sintomas associados. A doença de Alzheimer e as doenças do cérebro, às vezes, não são as únicas que afetam o cérebro e podem coexistir com outras doenças e com isso também tornar maior o desafio, não só do diagnóstico da doença, mas também o seu tratamento”, acrescenta. Segundo Tiago Gil Oliveira, “as doenças cerebrovasculares ou até outras acumulações tóxicas de outras doenças neurodegenerativas podem ocorrer com a doença de Alzheimer” e, nesse sentido, investigam-se, agora, “as alterações ao nível da ressonância magnética nestes doentes, que, depois, permita não só fazer um melhor diagnóstico mais específico da doença de Alzheimer, mas também desenhar novas terapêuticas em revertam estas alterações”.
“Ao nível da melhoria do diagnóstico, a nossa investigação é quase imediata. No que toca à definição de novas terapias, é um percurso muito mais longo”, admite.
“Não em Portugal e na grande maioria dos países da Europa, mas em muitos países do mundo já temos terapias que foram aprovadas para alterar o curso da evolução da doença de Alzheimer, diminuindo ou atrasando, melhor dizendo, o déficit cognitivo que se instala ao longo do tempo na doença de Alzheimer. Essas investigações que levaram a estas terapias são focadas na compreensão da fisiopatologia da doença de Alzheimer, em que o objetivo é retirar parte destas acumulações tóxicas do cérebro. Eu diria que não é a única via para tratar a doença de Alzheimer, até porque ainda não foi aprovada porque ainda não é completamente segura, daí ser muito importante, não só a minha equipa, que se dedica a estudar novas e outras alternativas para o tratamento da doença de Alzheimer, assim como outras equipas em todo o mundo que se dedicam a este problema”, explica.
Voltamos aos cuidadores. Rodrigo teve que aprender a cozinhar, a lavar a roupa, dá banho à esposa e trata de todas as tarefas diárias. Mas apesar do cansaço que ainda suporta, teve que enfrentar o preconceito que ainda existe na sociedade com a doença. “As pessoas dizem: a professora Susana está tolinha’ e eu lidei mal com isso”, atira. No entanto, num mundo de preconceitos ainda existem pessoas especiais que olham à sua volta com um olhar sincero e sem filtros. “Ainda há miúdos, hoje já como 21 ou 27 anos, autistas, que lhe ligam (à professora Susana), para lhe dizerem que têm uma namorada nova”, diz, deixando escapar um sorriso. No entanto, o sorriso foge-lhe logo de seguida, porque Susana “já não e capaz de atender o telefone”.
O maior medo de Rodrigo é o dia em que acordar e Susana já não o conhecer. Diz estar preparado, mas talvez nunca ninguém esteja.
Sessão de musicoterapia, na Casa da Alegria
“Da experiência, é bem mais difícil quando o doente é a esposa, porque o marido, muitas vezes, tem que assumir funções que nunca fez. Maridos e esposas que se dedicam de uma forma plena, que aceitam os déficits, que muitas vezes são confundidos, que já não são identificados como esposa ou como marido, mesmo sendo ele o cuidador de tudo. Tem de vestir, dar banho, dar a alimentação, dar a medicação e depois não ser reconhecido e continuar ali num papel cuidador, amoroso e compreensível. Isto é fascinante”, comenta a médica Susana Rocha.
‘Maria’ teme o dia em que o marido dependa dela ou ela dele. Pensa no futuro porque não têm descendência. “O que vai ser, não sabemos. Eu digo muitas vezes que se eu ficar inutilizada ou ele, para arranjar quem cuide bem de mim e continuar a sua vida”, assume. A médica aposentada preza muito “a qualidade de vida”.
“Assusta-me muito ficar com uma pessoa dependente, ou ficar eu dependente a cargo dele. É melhor não pensar muito no futuro, viver o presente enquanto estamos bem”, afirma.
‘Maria’ admite que pensa muito na situação em que vive a irmã de ‘Manuel’, também com Alzheimer. “Vejo para a minha cunhada que há dificuldade em arranjar cuidadores. A altura da pandemia foi um marco importante em termos de agravamento da situação. Ficou confinada com o marido em casa dois anos e o processo, que já estava numa degradação mais acelerada, foi catastrófico”.
O casal vive uma situação financeira que lhes permite contratar pessoas que ajudam diariamente, durante o dia, a noite e ao fim de semana, mas nem toda a gente tem essa possibilidade, atira ‘Maria’.
“São pessoas que, em certas fases, são difíceis de acompanhar, tanto nesta doença como noutras. Há algumas unidades de cuidados continuados e de lares, mas não é fácil arranjar alguém que queira mudar as fraldas e estar com alguém que está o dia todo a repetir as mesmas coisas”, lamenta.
Desde o momento em que é diagnosticado com Alzheimer, o doente pode viver, em média, cerca de 10 anos. Em 2021, morreram 1.570 pessoas com esta doença em Portugal, sobretudo mulheres acima dos 75 anos. A comunidade deposita esperança na ciência, mas esta depende de financiamento, lembra o investigador Tiago Gil Oliveira. “A nossa compreensão da doença de Alzheimer é muito maior atualmente. Ainda não tem um nível equivalente de translação para terapêuticas, porque realmente é um grande desafio tratar esta doença. E aquilo que nós temos que fazer é investir mais, é preciso também que haja investimento não só por parte das instituições governamentais para alocar mais recursos para se fazer investigação, não só nos hospitais, mas também juntamente com as universidades”, apela. O médico salienta a importância do “investimento a nível institucional”, garantindo que “este é um problema que ainda não está resolvido”.
Susana, Fernando e Rosa viverão um dia das histórias que alguém lhes contará da sua própria vida. Rodrigo e Maria alimentar-se-ão de recordações dos momentos que partilharam com os companheiros, para quem serão, um dia, desconhecidos. A memória é como um disco que, depois de tanto tocar, começa a riscar e a perder a música. Susana, Fernando e Rosa podem deixar de saber a letra, mas saberão reconhecer a melodia… porque “recordar é viver”.