Regional 02.10.2023 15H04
Há 'vida' e projetos a nascer nos bairros de Braga
BragaHabit recebeu, esta segunda-feira, no Azerbaijão, o Prémio ‘Habitat Scroll of Honour Award’, atribuído pela ONU ao projeto Assembleia de Moradores.
A BragaHabit recebeu, esta segunda-feira, no Azerbaijão, o Prémio ‘Habitat Scroll of Honour Award’, atribuído pela Organização das Nações Unidas (ONU) ao projeto Assembleia de Moradores, uma iniciativa que aproxima a administração da empresa municipal dos habitantes dos bairros das Enguardas, Andorinhas, Alegria, Santa Tecla, Picoto, Parretas, Montélios, Bracara Augusta e Nogueira da Silva e Rua Professor Machado Vilela. Nas assembleias são partilhados projetos e oportunidades em prol da melhoria destes bairros, promovendo a reflexão sobre as prioridades para o trabalho conjunto. É o único projeto europeu premiado e o primeiro português a ser reconhecido.
Para o administrador da empresa municipal, Carlos Videira, este projeto permite “discutir os problemas, desafios e encontrar soluções”. “É um incentivo muito grande para a BragaHabit, enquanto promotora, mas, acima de tudo, para as pessoas que estão nos bairros e que sentem que o seu trabalho, para além de estar a fazer a diferença na vida das pessoas, está a ser visto. Esperamos que possa ser replicado noutras latitudes, porque aquilo que vemos é uma diferença muito grande na vida das comunidades”, denotou o responsável.
Segundo Carlos Videira, “muitas destas associações estavam, praticamente, em gestão, sem eleição de corpos sociais há muito tempo, com grande dificuldade de recrutar moradores para integrar os órgãos e para fazer este trabalho de associativismo e de voluntariado em prol da sua própria comunidade”. Depois do início da Assembleia de Moradores, as equipas estão “mais robustas e há cada vez mais pessoas a participar no associativismo”.
A RUM foi conhecer três dos dez projetos da primeira edição do Viva o Bairro, criado precisamente desta parceria com as associações de moradores e que pretende aumentar o sentimento de pertença ao sítio onde vivem e tornar os bairros mais abertos e integrados numa cidade que se quer para todos. Os projetos selecionados contam com cerca de 20 mil euros cada um para passar a ideia do papel para o terreno.
Escola de Música e Cidadania do Picoto conta com 30 alunos
Sexta-feira, 18h30. Estamos no bairro do Pico, situado num cume com vista para a cidade de Braga, onde a pobreza transparece nas paredes degradadas de casas habitadas pela etnia cigana. Neste complexo habitacional vivem mais de 150 pessoas. Aqui, a cultura não fica à porta. A Escola de Música e Cidadania do Picoto conta com cerca de 30 crianças e jovens.
Os professores aguardam, à porta, a chegada dos alunos para dar início à aula de música. Mara Monteiro é a primeira a chegar. “Eu acho bem divertido, podemos aprender muitas coisas, os professores são os melhores. Eu achei que ia aprender mais coisas aqui, coisas musicais, e estar mais em convivência com as pessoas”, afirmou a jovem. Mara aprendeu a tocar guitarra e carron, tal como as amigas Matilde Silva e Noemi Ribeiro. “Este projeto é fixe, nós passamos o tempo aqui e comecei a gostar”, afirmam. Questionadas sobre a possibilidade de o projeto continuar a resposta foi imediata: “Sim, sim, sim”. O carron, dizem, é o instrumento que mais gostaram de aprender a tocar, até porque o identificam com a sua cultura.
“As aulas são divididas em três modalidades, uma aula de prática instrumental, uma aula de formação musical, que é a aula teórica, e uma aula de oficina criativa, que é uma leitura, através de atividades lúdicas, da realidade social e uma interpretação que os alunos fazem dessa realidade”, detalhou a professora Eliete Gonçalves.
Segundo a docente este projeto tem provado ter impacto “na autoestima” dos jovens e na “abertura deles para participar em outras atividades e outras comunidades”. “Eles sentem-se mais pertencentes a outros espaços por meio das atividades que realizam aqui, com as crianças que não são ciganas”, acrescentou.
Escola de Música e Cidadania do Picoto
Programa Sénior Feliz, Saudável e Seguro "é uma hora de libertação"
Seguimos para o bairro social das Enguardas, na Freguesia de São Victor, mesmo a tempo da aula de ginástica. Mais um projeto do Viva o Bairro. O aluno mais velho tem 86 anos, o mais novo 58. O programa Sénior Feliz, Saudável e Seguro reúne todas as segundas-feiras, às 9h30, mais de duas dezenas de habitantes do bairro que procuram manter mente sã em corpo são. Arminda Costa é uma aluna assídua. “Eu acho que isto é uma coisa útil, este projeto está a fazer bem a muita gente e temos que progredir, são coisas que fazem muito bem à saúde”, garantiu. Arminda diz estar, agora, “mais ativa”. “Se pudesse haver mais dias eu ficava feliz, mas uma vez por semana já é bom”, atirou.
Manuel Henriques é reformado e tenta não ter falta na caderneta. “Isto é de louvar. A ginástica, embora seja básica, é uma hora de libertação, durante aquela hora somos felizes. É uma forma de todos aqueles a quem faltam cuidados os ter aqui junto da associação”, apontou.
António Araújo é o rosto da Associação de Moradores e no bairro, diz, o entusiasmo com estes projetos é cada vez maior. “Temos tido muita participação, fazemos outras atividades com os idosos, como o box sénior, temos para breve a capoeira, também estamos em negociações com as professoras de música para termos umas aulas. As atividades das associações de moradores replicaram-se com este projeto e as coletividades estão com vontade de trabalhar e de planear atividades”, adiantou o presidente.
De acordo está Carlos Videira, administrador da BragaHabit. “As atividades conseguiram ganhar espaço na agenda das pessoas que lá vivem e, em alguns casos, até de pessoas que não vivem nos bairros, mas que lá vão, em função das iniciativas que são realizadas”, explicou. Para a empresa municipal, acrescenta, “é fundamental conseguir capacitar as pessoas no terreno para fazer este trabalho, em primeiro lugar, de interlocução, para que possam ajudar a priorizar as necessidades e a intervenção no território e, em segundo lugar, de resposta imediata que pode ser prestada por essas pessoas e que acaba por ser uma resposta melhor do que aquela que a empresa daria, de uma forma centralizada”.
Sénior Feliz, Saudável e Seguro
Ringue da Amizade vai transformar uma praça de cimento num espaço intergeracional
Seguimos viagem para conhecermos agora o Ringue da Amizade. Junto à Rua Professor Machado Vilela, as fronteiras do bairro ultrapassam os limites da freguesia de São Victor.
O pavimento, revestido a cimento, que já foi um campo de basquetebol, vai voltar a ter cor. Este é mais um dos dez projetos aprovados na primeira edição do Viva o Bairro. Neste caso, o objetivo é juntar diferentes gerações no mesmo espaço.
Carla Freitas é a presidente da Associação Pegadas do Brincar, a entidade promotora do projeto, que tem como objetivo envolver “a comunidade na transformação do espaço, no sentido de o humanizar, através de uma diversidade de experiências”. “Nós temos a área do conto, a área dos jogos, a área do movimento mais livre, até porque conhecemos bem os efeitos negativos que tem uma infância sedentária. O objetivo é ligá-los o máximo possível à natureza”, adiantou.
O projeto do Ringue da Amizade foi pensado através das crianças, integrando as suas ideias e contributos. “Elas manifestaram um conjunto de interesses através de oficinas de cocriação em que os arquitetos ouviram os desejos que tinham e a partir daí listaram todas as atividades que eram viáveis, retiraram só piscinas ou rodas gigantes, que não se adequavam, e procuraram integrar tudo o resto”, explicou Carla Freitas. Segundo a responsável, os próprios arquitetos elogiaram a articulação com os mais pequenos, porque, de outra forma, “não conseguiriam pensar ou projetar uma praça tão rica”. Embora não viva no bairro, José Pedro Macieira está certo de que as visitas à casa dos avós vão multiplicar-se, não só porque a avó é “uma boa cozinheira”, mas porque o futuro ringue contará também com algumas das suas ideias. “Imagino-me a brincar com estas crianças, que são o futuro do mundo. Tivemos umas ideias de áreas para bicicletas e de uma cozinha do lama, para trazer mais crianças para o ringue e não se magoarem”, afirmou.
Mirna Fierne também não é habitante deste complexo habitacional, mas foi aqui que encontrou a família que não tinha em Portugal. “Eu tinha acabado de chegar a Braga e foi uma oportunidade de socializar a Laura (a filha)”, começou por nos contar. A brasileira denotou, desde o início, “a participação e a importância da família”, no ringue.
E já que falamos em família, Eunice Freitas vive no bairro há 20 anos e espera que os filhos possam, tal como ela, aproveitar o espaço público onde miúdos e graúdos convivem em harmonia. “Quando eu aqui cheguei, foi muito importante para a minha adaptação o grupo de amigos que encontrei. Chegar da escola, poder estar aqui no ringue e poder fazer amigos tão perto de casa”, lembrou.
Agora, com filhos, para esta bracarense “é extremamente importante ter um espaço onde eles possam brincar de forma segura, saudável, ao ar livre, em contato com outras crianças e vizinhos”. No ringue terão também lugar “as famílias que estão sós, por exemplo os casais de idosos, ou pessoas que já têm mais idade”, porque é “um espaço que pretende agregar todos”. “Nós queremos muito ver essa transformação e sem esta ajuda às vezes fica difícil começar”, acrescentou Eunice, enaltecendo que o prémio que a ONU entrega hoje à BragaHabit é "fundamental", na sua opinião, “para motivar as entidades a desenvolver e a ajudar mais”.
Ringue da Amizade
Voltamos ao ponto de partida, à Escola de Música e Cidadania do Picoto. A professora Eliete diz que Matilde é um exemplo da transformação e do impacto que o projeto tem nas crianças. “No início do ano, eles estão muito agitados. Temos uma aluna que não conseguia fazer nenhuma atividade, porque era muito dispersa, e, de repente, ela encontrou um instrumento que gostava, o carron, e acabou por tornar-se a líder do grupo. Ela chegava concentrada, sentava e pedia atenção dos alunos”, descreveu.
Os pais são convidados a participar nas atividades, sendo que numa das apresentações públicas desta Escola foi o pai de um aluno, que é músico, a fazer a abertura. “É importante também que as crianças vejam que os seus familiares são importantes para nós”, comentou a professora.
Nas Enguardas, o foco são os mais velhos, assim diz António Araújo. “Nós temos workshops de saúde, rastreios e passeios, porque sentimos que, aqui no nosso sítio, temos de trabalhar para as pessoas idosas, mas o que nós sentimos é que as pessoas gostam do que estamos a fazer”, afirmou.
Arminda reforça a mensagem: “As aulas de ginástica são tão boas, faz-nos bem à mente, é saudável e convivemos uns com os outros”. Manuel Henriques garante que em tudo o que puder vai continuar a participar. “Ainda bem que estes eventos surgem, porque para aqueles que estão fechados, às vezes isolados, é uma hora em que se sentem em família. A maior parte, aqui, vive em apartamentos e se não fosse estes projetos não podíamos conviver”, frisou.
“Tínhamos uma pessoa que usava moletas, que fazia cinco minutos de ginástica e hoje consegue estar a fazer uma hora. Temos outra que não saía de casa, que me disse que isto a obrigou a sair e que agora vai a tudo”, comprovou António. Aproveitando a oportunidade, o senhor Henriques deixou um pedido: “Um professor podia ensinar a dançar a quem quiser, porque tudo isto é bom numa sociedade envelhecida, que não tem outro meio de se divertir, se não for assim”.
Em Braga há vida nos bairros sociais e um trabalho que pretende combater o estigma que existe relativamente a quem vive nestes complexos habitacionais. No centro ou na periferia, o objetivo é que não haja uma cidade de distância.